PROSPECTIVAS DA IGREJA COMO POVO DE DEUS NA AMÉRICA LATINA (Parte III)


2. UMA IGREJA PORTADORA DE ESPERANÇA E VIDA PARA OS EXCLUÍDOS E MARGINALIZADOS

A América Latina parece que já se cansou de ser chamada o Continente do futuro. Tudo que os homens e a mulheres latino-americanos almejam está sempre projetado no futuro; e este futuro (já se passaram 500 anos) jamais chega a tornar-se tempo presente. A exclusão e a marginalidade são o tempo presente para milhões de filhos e filhas da Pátria-Mãe.

A Igreja diante desta constatação de exclusão e marginalidade é chamada a ser portadora de esperança e vida no Continente. Ser portadora da esperança e da vida significa optar por um projeto de promoção humana que priorize as questões da educação, da saúde, dos respeito aos direitos humanos, do exercício da cidadania, da habitação e do trabalho.

Assumindo esta postura, a Igreja-profecia será para estes milhões de seres humanos, que são filhos e filhas de Deus, a portadora da fé que transforma a realidade histórica e da esperança que não engana. A esperança cristã liberta e coloca o ser humano no horizonte da luta pela realização dos novos céus e nova terra. Ela será a portadora da vida que vence toda morte; da vida que irrompe transformando a velha cansada e explorada terra ameríndia em terra de todos, em terra-vida-mãe.

2.1. IGREJA POVO DE DEUS CONVOCADO PELO DEUS DA VIDA PARA DEFENDER A VIDA

Todos os anos as revistas especializadas publicam os índices de mortalidade dos países pobres do mundo. Milhões de pessoas continuam morrendo de fome, de desnutrição, de doenças, de contaminação. Este extermínio silencioso parece passar despercebido aos olhos dos grandes capitalistas mundiais. Porém, este fato não é ocasional, «coisa do destino». A morte destes seres humanos é cuidadosamente planejada; não é a morte natural. É uma morte desejada, premeditada para atender os objetivos dos projetos capitalistas de concentração do capital nas mãos de uma minoria da humanidade, que não deseja repartir os seus bens.

As campanhas realizadas em alguns países para esterilizar as mulheres, os movimentos pró-aborto, o pseudo-problema do crescimento populacional, são facetas de um mesmo projeto que coloca os interesses econômicos e sociais acima do valor da vida humana.

A Igreja continuará lutando e sofrendo para defender a vida humana dos milhões de homens e mulheres latino-americanos que continuam a serem vítimas dos projetos sócio-econômicos que defendem apenas a vida de um pequeno grupo social poderoso e privilegiado.

2.2. IGREJA POVO DE DEUS ANUNCIADOR DE UMA NOVA CULTURA DA SOLIDARIEDADE E DA CONVIVÊNCIA ENTRE OS POVOS

O Povo de Deus tem a responsabilidade de anunciar profeticamente uma nova cultura de solidariedade que vise implementar as relações entres os povos latino-americanos na superação de seus principais problemas sociais e econômicos.

A cultura da solidariedade é caracterizada por uma sensibilidade para partilhar e assumir as causas que defendem a vida dos mais fracos e pequenos. A educação que a Igreja é chamada a promover no Continente deve priorizar: o valor da união da força dos pobres, dos excluídos e marginalizados. Isolado ninguém é capaz de conquistar nada; a percepção e sensibilidade para com o sofrimento dos pobres. O clamor por justiça dos pobres não deve tapar os nossos ouvidos, mas abrir o nosso coração, para tornar o seu clamor, o nosso clamor; a sua dor, a nossa dor; os seus sofrimentos, o nosso sofrimento; a conscientização da necessidade de todos participarmos da construção da nova sociedade latino-americana.

A convivência pacífica entre os diferentes povos ameríndios depende de um processo educativo que enfatize os valores que unem os povos. Irmanados em Jesus Cristo, os homens e as mulheres da grande Pátria-Mãe são chamados a viver a fraternidade, respeitando as suas diversidades e buscando em comum as respostas para os seus problemas.

2.3. UMA IGREJA COMPROMETIDA COM A LIBERTAÇÃO INTEGRAL DO HOMEM LATINO-AMERICANO

A Igreja, durante os anos ‘70 e ‘80, foi acusada em alguns Países de ser muito politizada e de haver descuidado demasiadamente da dimensão espiritual do homem a quem pretendia salvar, engajando-se no processo político-histórico da construção de uma nova sociedade. Para muito a Igreja deveria apenas cuidar de assuntos espirituais, já que esta é a sua especialidade, deixando para outras entidades e organizações civis cuidarem com mais competência dos assuntos mundanos. Porém, a Igreja é consciente de que para ser fiel à missão de libertação que Jesus lhe confiou deve trabalhar pela promoção integral do homem.

3. A PROMOÇÃO HUMANA

Sabemos que no Continente dos empobrecidos não basta dá comida aos famintos, assumindo uma atitude assistencialista que tende a perpetuar a sua condição de dependência, que eles estarão automaticamente promovidos, dignificados. A questão da fome e da miséria do povo ameríndio jamais será resolvida com a doação de cestas básicas, campanhas de arrecadação de alimentos ou com presentes esporádicos de políticos, por mais bem intencionados que sejam. Trata-se de uma estrutura de empobrecimento onde os pobres ficam cada vez mais pobres e os ricos ficam cada vez mais ricos.

3.1. EXPERIÊNCIA DE FÉ E VIDA ECLESIAL COMO SERVIÇO DE AMOR AO HOMEM LATINO-AMERICANO

O binômio fé e vida, promulgado no documento da Catequese Renovada, provocou uma séria reflexão da ligação que deve existir entre a teoria e a prática eclesial. A fidelidade ao projeto libertador de Jesus de Nazaré passa necessariamente pela coerência entre aquilo que a Igreja diz e aquilo que ela faz.

O mandamento do amor: Amar o próximo como a si mesmo deve impregnar todas as relações entre a comunidade eclesial e a sociedade. Deste modo, a ação pastoral da Igreja tem sua fonte no amor que Deus tem pela criatura humana. Amar o homem e a mulher pobres e excluídos latino-americanos significa amar o próprio Deus. Tudo o que a Igreja faz em prol deles é a Deus que o faz. O amor desconhece as barreiras impostas pelas convenções e regras sociais que estabelecem quem precisa ser amado.

3.2. O AMOR PREDILETO PELOS POBRES

Na América Latina aqueles que a Igreja deve manifestar sua predileção, o seu amor, são os pobres, os fracos, os pequenos, os excluídos e marginalizados. Todas as suas iniciativas pastorais visam a promoção humana daqueles clamam a Deus libertação. Deste modo ela manifesta o amor libertador e salvador de Jesus Cristo na história ameríndia.

Cabe aos cristãos na América Latina vivenciar com maior radicalidade as exigências do amor: na construção de comunidades fraternas e irmãs umas das outras; vigiar para que suas ações de promoção social não acomodem os governos, e os libere de suas responsabilidades sociais; mostrar que o amor é o único sentimento que pode unir os homens para juntos se libertarem de toda forma de escravidão e de pecado; testemunhar com sua práxis eclesial que podemos manter relações sociais baseadas na fraternidade e no amor; trabalhar dia e noite para a construção do Reino que começa aqui e agora, a civilização do amor.

4. PROSPECTIVAS PARA O FUTURO DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA

Muitos estudiosos da realidade eclesial da América Latina apontam para o Continente, que tem o maior percentual de católicos do mundo, como a Igreja do futuro. Caberá a essa Igreja configurar o modo de ser cristão no mundo. Sem dúvida nenhuma é necessário valorizar os dados deste diagnóstico estatístico, mas o fator decisivo que definirá a contribuição da experiência do Povo de Deus à Igreja certamente não deverá ser averiguado no elemento quantitativo.

O rosto pobre do Povo de Deus que caminha na América Latina, o seu modo de viver em comunidade, sua voz profético-libertadora estão entre os elementos eclesiológicos incorporados na reflexão eclesiológico que ajudará a Igreja como Povo de Deus, sacramento de salvação, a se manter fiel ao anúncio do Reino de Deus.

4.1. A IGREJA COMUNIDADE DA SALVAÇÃO

Na sociedade pós-moderna sabemos que a Igreja não é a única instância religiosa credenciada a oferecer a salvação aos seus fiéis. Existe uma imensa vastidão de grupos religiosos e de pessoas que prometem e vendem a salvação, a cura de todos os males, a utopia do mundo sem males. No meio deste cenário surge o questionamento: como apresentar o Povo de Deus como comunidade da salvação? Haveria por acaso salvação «mais segura» no Povo de Deus do que na salvação oferecida por outros grupos religiosos? O que, de fato, significa salvar-se na América da cruz e da espada, do sangue e da impunidade, da violência, da injustiça e do desrespeito à vida?

Alguns grupos religiosos apresentam a salvação como uma etapa conclusiva da existência humana, situada para o além túmulo, como recompensa dos esforços humanos e das obras boas. Outros, defendem a salvação-conquista como fruto do esforço individual de observância da Lei, dos Mandamentos. A Igreja na América Latina assume uma postura diferente destes grupos religiosos. Ela se apresenta aos homens e mulheres ameríndios como instrumento de salvação, consciente que a sua missão é dá continuidade à missão de Jesus Cristo, animada pelo Espírito Santo. Nesta perspectiva afirma o Sínodo dos Bispos: «O Espírito Santo, que guiou os passos de Jesus, é também hoje o primeiro evangelizador no novo Povo de Deus, trabalhando para congregar os que nunca receberam a Boa Nova e os homens e mulheres que se afastaram da fé cristã. Jesus continua oferecendo a salvação por meio do seu Espírito, durante o caminho da Igreja» (1).

4.1.1. A IGREJA COMO MOMENTO KAIROLÓGICO PARA OS HOMENS E MULHERES AMERÍNDIOS

Observamos que na história do povo hebraico a intervenção de Deus na sua história sempre foi assumida como um momento kairológico. A sua ação salvadora de Deus foi acolhida como ação educadora e libertadora do povo.

Na história do Povo de Deus que está na América Latina, a Igreja necessita ser acolhida como um momento kairológico de Deus. A Igreja não é uma instituição humana asseguradora e defensora da justiça, da igualdade, da fraternidade e de todos os valores éticos humanos. A sua existência é de iniciativa divina: continua na história dos homens a missão iniciada por Jesus Cristo, anunciando e manifestando o Reino de Deus. Portanto, «é preciso refletir sobre o modo como esta situação histórica afeta o Povo de Deus e também sobre a participação da Igreja que está na América no nascimento de uma nova civilização de justiça, de solidariedade e de amor» (2).

Este momento kariológico deve ser acolhido com um momento de manifestar todos os esforços para construir de verdade uma nova sociedade latino-americana baseada na justiça, na solidariedade entre seus diferentes povos e no amor que tudo renova e recria. Celebrar os 500 anos da Evangelização significa acolher a Nova Evangelização do Continente como um momento kairológico para o Povo de Deus.

4.1.2. O PARADIGMA DA SALVAÇÃO COMPREENDIDO COMO PROCESSO DE LIBERTAÇÃO DO CONTINENTE

A salvação para o Povo de Deus na América Latina é concebida como um processo de libertação que implica num esforço de aprofundar os dados da Revelação centralizada na pessoa e na missão de Jesus de Nazaré.

O conceito de salvação neste contexto histórico afasta qualquer interpretação de cunho fundamentalista e individualista tão marcadamente presente no universo das religiões da pós-modernidade. A salvação não é uma conquista que leva a um esperado triunfalismo do bem sobre o mal como numa batalha medieval, ou menos ainda, na auto-proclamação da vitória dos justos sobre os injustos, dos santos sobre os pecadores. A salvação não é um prêmio a ser concedido para os mais treinados e habilitados combatentes da fé cristã. Portanto, a salvação não pode ser reduzida a uma conquista do maior tesouro espiritual, a um pseudo-estado de perfeição espiritual.

O que significa salvar-se num Continente marcado pelo extermínio de milhões de seus filhos e filhas por causa da fome, da miséria, da violência e da marginalidade social? Certamente será difícil pensar num projeto de salvação que seja viabilizado pelo acúmulo de obras de caridade e de dias eternos de paz paradisíaca. Ou ainda no célebre ato de entrega a Jesus que o crente deve fazer para ser salvo professado nas igrejas e seitas pentecostais.

A salvação é um processo que envolve o homem e se encarnando na sua contingência histórico espaço-temporal. Portanto, acontece no aqui e agora da historicidade humana. Não é algo a ser conquista no paraíso eterno. A Igreja como Povo de Deus para salvar o homem e a mulher latino-americanos assume todos os seus processos de libertação: o processo educacional, através do qual o povo vai paulatinamente adquirindo a consciência de sua participação na construção de seu destino histórico; o processo político, que possibilita o cidadão a exercer a sua cidadania e tornar-se protagonista nas relações e condução da vida social; o processo econômico, no qual o povo é chamado a escolher modelos econômicos que garantam o desenvolvimento econômico sustentável, capaz de dar condições de vida mais digna para a maioria da população; o processo cultural, assegurar e defender seus valores, sua identidade de povo; e o processo religioso, aonde o povo vai descobrindo e distinguindo na sua vivência religiosa as experiências libertadoras da fé e as experiências escravizantes e exploradoras da fé.

Apresentar a salvação para o homem ameríndio é apresentar a proposta da construção do Reino de Deus anunciado e concretizado no seu Filho Jesus Cristo. O encontro com o pobre, com o sofredor, com o excluído social, é um encontro com o próprio Jesus Cristo é o fundamento no qual o Reino começa a acontecer na História.

Diante das reflexões acima expostas podemos enumerar algumas implicações salvíficas do anúncio do Reino na América Latina: a dignidade de vida para os empobrecidos; o respeito à vida do ser humano; a autonomia e soberania dos povos latino-americanos na gestão de suas pátrias; o resgate da história e da cultura de cada povo; a criação de relações econômicas mais justas entre os países latino-americanos e os blocos econômicos; a superação das desigualdades abismais entre pobres e ricos através de uma redistribuição das riquezas nacionais; a desmitização dos ídolos do capitalismo (o ter, o poder e o prazer).

O apelo evangélico, «arrependei-vos e crede no Evangelho» (Mc 1,15), ressoa, não apenas como um desafio pastoral para os cristãos latino-americanos, mas como uma exigência de fidelidade ao discipulado de Jesus Cristo no processo de libertação e salvação para o Povo de Deus na América Latina.

4.2. A IGREJA COMUNIDADE DA MISSÃO

O conceito Povo de Deus revela a Igreja como a comunidade dos discípulos de Jesus convocada para ser uma comunidade missionária. «Ao adotar o conceito de povo de Deus, o Concílio fez da missão a própria razão de ser da Igreja, a sua grande novidade em relação ao antigo Israel. Dessa maneira renovou a teologia da missão dando-lhe o seu significado mais amplo que tinha perdido no decorrer dos séculos. Antes, a missão era vivida como realidade marginal, que se desenvolvia ao lado da vida da Igreja. Agora a missão às nações do mundo aparece como o movimento histórico que define o modo de ser da Igreja. O novo povo de Deus entra no mundo como missionário» (3).

Ser Povo de Deus é ser comunidade missionária, é ser participante da mesma missão de Jesus de Nazaré e dos seus Discípulos. A comunidade se reúne em nome de Jesus para evangelizar. Como comunidade assume as dificuldades, os desafios da missão.

4.2.1. UMA NOVA CONCEPÇÃO DA MISSIONARIDADE DA COMUNIDADE ECLESIAL: TODOS ENVIADOS PELO SENHOR DA HISTÓRIA

Durante vários séculos a América Latina foi evangelizada por padres e leigos religiosos missionários enviados pela Coroa portuguesa e espanhola. E criou-se no imaginário cultural-religioso do povo que missionário é alguém que vem de fora ou parte para anunciar o Evangelho em terras longínquas. O evangelizado não se percebia como missionário. O seu testemunho cristão resumia-se a frequentar as missas, participar das novenas e festas dos padroeiros e a reza o terço.

A nova concepção da missionaridade do Povo de Deus exige que a comunidade eclesial avalie a sua consciência missionária. Cada membro deve está comprometido com a ação evangelizadora da Igreja. Todos os membros do Povo de Deus são enviados a evangelizar por Jesus Cristo. A comunidade enquanto comunidade deve dá o seu testemunho missionário: anunciar o evangelho de Jesus Cristo aos homens e mulheres latino-americanos através de suas celebrações, festas, intervenções na área político-social, iniciativas de promoção humana e na denúncia de tudo aquilo que não constrói o Reino de Deus.

4.2.2. A PARTICIPAÇÃO DOS LEIGOS NA VIDA ECLESIAL: UMA IGREJA MAIS PARTICIPATIVA E MINISTERIAL

A introdução da categoria do Povo de Deus pelo Vaticano II na reflexão eclesiológica reformulou em profundidade a concepção institucional da Igreja. O acento recai não mais sobre quem ordena, quem pune, quem ensina, mas sobre quem serve. Ou seja, sobre a carismaticidade e ministerialidade da Igreja como Povo de Deus.

Nesta perspectiva a participação do leigo deixa de ser uma participação suplementaria para se configurar num protagonismo participativo na vida da comunidade eclesial. O leigo deixa de ser o mantenedor financeiro da instituição eclesiástica, executor daquelas tarefas que a hierarquia se auto-proíbe de fazer e de se envolver, destinatário de documentos e orientações doutrinais. O leigo é chamado a viver seu carisma e a exercer o seu ministério num contexto de comunhão e participação. Na Igreja da comunhão e da participação desaparece o dilema quem deve mandar e quem deve só obedecer: a missão é de todos e vai assumida segundo o critério da carismaticidade e da ministerialidade.


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(1) Sínodo dos Bispos. Assembléia especial para a América. Encontro com Jesus Cristo, nº11.

(2) Ibid. nº 1.

(3) J. COMBLIN, O Povo de Deus, pg. 30.

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