PROSPECTIVAS DA IGREJA COMO POVO DE DEUS NA AMÉRICA LATINA (Parte I)


Na tentativa de compreender a Igreja na América Latina como Povo de Deus, a partir da ótica eclesiológica dos documentos da II Conferência Episcopal de Puebla e da III Conferência Episcopal de Santo Domingo, podemos traçar algumas prospectivas que caracterizarão a ação evangelizadora dos cristãos comprometidos com a construção do Reino de Deus nestas terras ameríndias. O nosso esforço será aquele de continuar a delinear o novo rosto de Igreja Povo de Deus, comprometida com os mais pobres e marginalizados.

Para atingir este objetivo nos moveremos em torno das seguintes referenciais: em primeiro lugar, é necessário está atento aos desafios emergentes à sua ação evangelizadora da Igreja, considerando o contexto histórico-eclesial latino-americano muito preciso e em processo de constante transformação; em segundo lugar, é preciso ir além do momento da contextualização, lançando luzes que possam indicar algumas prospectivas para o futuro da Igreja na América Latina. Não se trata evidentemente de traçar prognósticos, ou oferecer receitas eclesiológicas para solucionar os possíveis futuros problemas da Igreja na América Latina; e por último, nos mover e impostar o discurso segundo a categoria eclesiológica da Igreja «Povo de Deus». Noutras palavras, as reflexões apresentadas nesta primeira parte visam aprofundar os questionamentos, às vezes angustiantes, sobre o futuro da presença dos cristãos católicos no Continente, considerando os principais traços de seu rosto peculiar: uma Igreja libertadora e pobre. Portanto, o questionamento fundamental não é se os católicos irão aumentar ou diminuir estatisticamente, ou qual o lugar que a Igreja deve ocupar no cenário histórico-cultural da América Latina, mas por onde o Povo de Deus deve caminhar no Continente para ser fiel ao projeto da Nova Evangelização.

1. DESAFIOS À AÇÃO EVANGELIZADORA DO POVO DE DEUS NA AMÉRICA LATINA

O Povo de Deus convocado a evangelizar no solo ameríndio reconhece que sua missão é bastante árdua e desafiante. A Igreja é chamada a realizar um novo êxodo de libertação com seus filhos e filhas no Continente da escravidão e da miséria.

Sabemos que a complexidade da sociedade latino-americana não se limita a sua dimensão religiosa. Por isso, se faz necessário ter sempre presente os fatores que caracterizam a sociedade, para que a ação evangelizadora possa contribuir no processo de libertação do Continente de uma forma efetiva e verdadeiramente conseqüente.

A análise de caráter histórica que realizamos no primeiro e no quarto capítulo, especificamente dos anos ’70 e ‘80, nos oferece elementos referenciais quanto à realidade concreta na qual a Igreja vive e é chamada a atuar. Nesta leitura podemos discernir os maiores desafios à ação evangelizadora do Povo de Deus para que a Igreja participe do mutirão de construção da comunhão e participação no presente e no futuro da América Latina.

1.1. UMA IGREJA COMPROMETIDA COM A VERDADE QUE LIBERTA E SALVA

A triste história das relações da Igreja com os governantes dos Países latino-americanos durante séculos denunciam uma Igreja que facilmente compactuou, colaborou com os poderes militares, civis e imperiais. A Igreja apoiando abertamente os interesses das classes dominantes e fechando os olhos aos sofrimentos, aos sonhos de libertação dos pobres e oprimidos, afastando-se paulatinamente do projeto evangélico de permanecer livre e libertadora, teve muita dificuldade em ser um sinal profético-libertador de Deus no meio do seu povo. Escrava dos poderes temporais e servindo ativa e passivamente aos projetos dos dominadores ficou impedida de ser a porta-voz da maioria dos homens e das mulheres latino-americanos reduzidos à escravidão, à miséria, vivendo como verdadeiros farrapos humanos, sem nenhuma dignidade humana e condenados ao extermínio. Porém, não faltaram algumas vozes solitárias que se colocaram ao lado dos marginalizados e excluídos pelo projeto colonizador europeu. Sofreram todo tipo de sofrimento e punição por parte dos órgãos repressivos do sistema colonizador por denunciarem as mentiras, as ambições, disfarçadas de verdades que salvam as almas. São exemplos deste testemunho: Montesinos, Bartolomé de Las Casas, Motolinía, Vasco de Quiroga, Turíbio de Mogrovejo.

1.1.1. CONVERSÃO À VERDADE QUE LIBERTA

A conversão da Igreja ao pobre não pode ser considerada um mero movimento histórico-eclesial na direção de um resgate da sua consciência histórica de sua dívida para com os empobrecidos, mas como o momento mais radical de retomada do seu compromisso com a verdade que liberta e salva: Jesus Cristo, o libertador e salvador da humanidade. Noutras palavras, quando a Igreja se converte ao pobre, se converte em Jesus Cristo; e quando a Igreja se converte a Jesus Cristo, torna-se pobre com os pobres.

No evangelho Jesus se declara como o único caminho que conduz à casa do Pai, como a única verdade que revela Deus para o homem e o homem para si mesmo, e como a vida que derrota definitivamente a morte e o pecado. «Eu sou a caminho, a verdade e a vida» (Jo 14,6). À pergunta intrigante de Pilatos durante o processo inquisitório de Jesus: «O que é a verdade? » (Jo 18,38) revela a centralidade da missão de Jesus: ser caminho, verdade e vida para a humanidade. E o seu desejo é que todos cheguem ao conhecimento da verdade (1) e nela permaneçam (2). A verdade que Jesus veio trazer ao mundo não é um fato averiguável experimentalmente, mas é aceitação de sua pessoa e participação em sua missão por parte do crente que o acolhe incondicionalmente num encontro pessoal e irrenunciável.

Jesus não é uma verdade construída pela mente humana a partir dos seus esquemas e especulações racionalistas para dominar um aspecto da realidade ou suprir as necessidades espirituais. Ele não é uma verdade que se impõe pela ênfase retórica ou pela necessidade psicológica de explicações das grandes interrogações que repousam no coração humana sem uma resposta evidente e convincente. Jesus é a verdade que se auto-revela. É verdade em si mesmo: revela Deus, procede e está em Deus. «O Pai que me enviou, me prescreveu o que devo dizer e o que falar» (Jo 12,49). Jesus é a verdade que liberta o homem de toda forma de mentira, de engano, de prisão. O homem diante de Jesus o homem conhece sua verdadeira imagem: ser livre e libertado, e só na condição de homem livre e libertado é que o ser humano atinge sua plenitude.

A Igreja na América Latina, seguindo as pegadas de Jesus Cristo libertador, terá que ser coerente com a verdade libertadora de seu fundador. Deverá ser uma Igreja promotora da verdade que liberta e capaz de assumir todas as conseqüências desta ação libertária.

O DFP olhando para a realidade a ser evangelizada no Continente, explicita as três verdades fundamentais que a Igreja deve anunciar como conteúdo central da evangelização:

a) A verdade sobre o homem. A visão cristã do homem considera os esforços da razão iluminados pela fé em compreender a verdade do homem latino-americano (3). Tal visão não intenta somente valorizar exasperadamente as afirmações axiológicas ou delimitar alguns conceitos antropológicos de caráter academicista, mas visa contribuir na construção de um Continente mais cristão, no qual venha respeitada e promovida autenticamente a dignidade humana.

A verdade sobre o homem deve refletir a realização de todas as suas dimensões e potencialidades. Por isso, a Igreja procura desmascarar as visões inadequadas do homem da América Latina. Tais visões se demonstram insuficientes em fornecer uma visão da pessoa humana que ponha em evidência sua própria identidade e o sentido da vida, e muitas vezes de modo sigiloso atentam contra a própria dignidade humana. A visão integral do homem defendida pela Igreja é uma visão que abrange todas as dimensões do ser humano, sendo capaz de dinamizar a sua liberdade, a sua comunhão e a sua relação com Deus e com seus irmãos.

Na aquisição da visão integral do homem latino-americano é necessário observar seus três universos culturais bastante distintos: o indígena, o branco e o africano. Estes universos culturais estão na raiz do modo de ver o mundo, Deus e o homem. Diante da questão do mundo, de Deus e do homem são diferentes os modos de reagir e enfocar tais questões. A cosmovisão cristã respeita estas diferenças e critica os enfoques que parcializam ou deformam ou aniquilam a visão integral do homem.

Segundo DFP algumas abordagens que pretendem definir o ser humano impedem a visão integral do homem (cf DFP 304-315):

A visão determinista tão peculiar ao homem ameríndio no seu universo religioso primitivo. O homem vive a mercê de forças mágicas, ocultas, diante das quais se considera impotente, prisioneiro. A única atitude que pode tomar frente a estas forças e render-se e colaborar sem restrições. Nesta visão o homem não reconhece a sua autonomia em relação à natureza e a história. Tudo é inexoravelmente determinado e imposto por Deus. Não sobra espaço para a liberdade. O perigo da visão determinista é que ela pode ser instrumentalizada para justificar as desigualdades sociais entre os homens;

A visão psicologista pretende reduzir a pessoa humana ao seu psiquismo. O esforço permanente que o ser humano deve fazer é controlar os seus instintos dos quais é escravo. Sem liberdade, consciente dos mecanismos e sublimações psicológicas não há espaço para a religião no horizonte humano;

As visões economicistas têm suas raízes no fator econômico. O homem é visto a partir destas visões como um objeto de consumo – visão consumista -, como parte da máquina industrial. O homem é transformado em um fazedor de coisas e mercadoria: «Tudo se fabrica e se vende em nome dos valores do ter, do poder e do prazer, como se fossem sinônimos de felicidade humana» (DFP 311). A obtenção do lucro justifica todas as ações humanas. Os valores espirituais são dispensáveis e supérfluos dentro da sociedade de consumo. A visão individualista do ser humano, promovida pelo liberalismo econômico, fundamentalmente materialista, prioriza a eficácia econômica e liberdade de cada indivíduo como sinônimo de dignidade humana. O homem realiza-se na esfera do individual. Da sua parte, o marxismo clássico caminha em direção oposta à visão individualista. A individualidade da pessoa é substituída pela coletividade. O homem deve desenvolver ao máximo as forças materiais de produção;

A visão estadista, fundamentando-se em alguns países latino-americanos na teoria da Segurança Nacional. Esta teoria considera o homem como um instrumento de defesa dos interesses do Estado, sempre em estado de alerta para defendê-lo de todos os perigos, mesmo que para atingir este objetivo tenha que renegar a sua própria liberdade individual. A vontade do Estado torna-se a vontade da nação e conseqüentemente do indivíduo. Neste tipo de visão acontece uma radicalização da teoria da Segurança Nacional que se apresenta como uma realidade absoluta acima de todas as pessoas. O DFP 314 denuncia que uma das conseqüências drásticas desta absolutização é a institucionalização da insegurança dos indivíduos na sociedade estatal;

A visão cientificista erige como critério único da verdade somente àquilo que pode ser demonstrado pela ciência. Segundo esta visão, a única vocação a qual o homem é chamado a realizar na sua breve existência é trabalhar incansavelmente para dominar o universo. Tudo é justificado em nome da ciência. Tudo e todos devem está a serviço do progresso técnico-científíco. A felicidade humana depende das conquistas da ciência.

Todas estas visões são redutivas e incapazes de fornecer uma visão integral do mistério do homem, e colocam em perigo o respeito e a promoção da dignidade humana. Somente na fé em Jesus Cristo é que este mistério pode ser iluminado.

Jesus Cristo revela e renova o homem para o homem. «Dele vem o vigor que nos permite libertar-nos a nós e libertar os outros do mistério da iniqüidade» (DFP 330). O documento expõe algumas verdades sobre o homem reveladas em Jesus Cristo: é Deus que ama o homem por primeiro e lhe chama à existência; o homem foi criado por Deus para participar da comunidade trinitária: o Pai com o Filho no Espírito Santo; o homem foi «eternamente idealizado e eternamente eleito em Jesus Cristo» (DFP 184), e recebe a tarefa de realizar-se com imagem criada de Deus, «refletindo em si mesmo e na convivência com seus irmãos, o mistério divino da comunhão» (DFP 184) através de um testemunho capaz de transformar o mundo; é convocado a construir uma convivência fraterna lutando contra o mal, a morte, a injustiça, a violência, o ódio e o medo; recebe a missão de recuperar na sua existência a sua relação amorosa com o Pai, rompendo definitivamente com o domínio do pecado enquanto peregrina rumo à liberdade e construção da fraternidade.

b) A verdade sobre Jesus Cristo. A verdade revelada em Jesus Cristo não muda de acordo com a passagem do tempo e as interpretações histórico-teológicas que possam ser elaboradas quanto ao mistério de sua Encarnação. Jesus Cristo é sempre o mesmo, ontem, hoje e eternamente. A verdade é o próprio Jesus revelado nas suas palavras, nos seus gestos e na sua própria pessoa.

Jesus Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Inserido na história dos homens, Jesus participa de todas as vicissitudes existenciais humanas de forma ativa, fazendo-se um de nós, exceto no pecado. Ele é «força motora da nossa história e inspiradora da verdadeira mudança social» (DFP 174).

A presença de Jesus na história dos homens é uma presença questionadora, transformadora, libertadora, salvadora. Diante dos projetos históricos esboçados pelos homens, Jesus assume uma postura profética denunciando as estruturas pecaminosas da sociedade que corrompem a dignidade da pessoa humana. Assumindo está atitude, Ele compartilha a vida, as esperanças e os sofrimentos e as angústias do seu povo para poder caminhar e construir a história segundo o desígnio do projeto do Pai.

Jesus não é um simples participante da história, mas Senhor da História e a plena manifestação do Reino de Deus no meio dos homens. Nele a história tem o seu início e a sua conclusão. Jesus é o salvador da humanidade. Durante toda a existência terrena, Jesus de Nazaré teve consciência de sua missão: «Anunciador e realizador do Reino e fundador de sua Igreja» (DFP 177). A Igreja recebeu a missão de anunciar a verdade do mistério de Jesus de Nazaré, Filho único de Deus após a sua ressurreição.

A verdade sobre Jesus Cristo garante a autenticidade de sua pessoa e de sua missão. Jesus Cristo não é um libertador emergencial, ou um guru promotor de uma ação taumatúrgica assistencial e superficial. Muito menos ainda pode ser considerado como um homem que desconhece as causas mais profundas da miséria e da pobreza de seu povo. O DFP 178 alerta para o perigo que podemos correr desfigurando, parcializando ou ideologizando a pessoa e a missão de Jesus Cristo. Jesus Cristo não pode ser reduzido à figura de um político, de um líder carismático, de um grande revolucionário, de um simples profeta no meio de tantos outros profetas de Israel. Tal postura corromperia a integridade do mistério de Jesus Cristo, e conseqüentemente da sua Igreja e do próprio Homem.

c) A verdade sobre a Igreja. O compromisso da Igreja é com a verdade que liberta. Um dos grandes desafios que tem como Povo de Deus no presente e no futuro da América Latina é continuamente manter o esforço de conversão aos pobres e superar dia após dia a grande nostalgia, de muitos de seus membros, principalmente da hierarquia, do retorno às regalias e privilégios do «palácio do poder real», com seus instrumentos sagrados de domínio e submissão. A Igreja é consciente de que os discípulos de Jesus não podem transformar a verdade de Deus em mentira (4). Outro desafio para a Igreja é permanecer vigilante para não se deixar cooptar e ser instrumentalizada pelos poderes políticos, que mascaram seus projetos individualistas sob o manto e a benção da religião. A sua autonomia diante dos poderes do mundo é essencial para se manter fiel à verdade que liberta.

A Igreja também deve está preparada para enfrentar as perseguições, as calúnias e até o martírio por causa da verdade. As perseguições e as calúnias impetradas por todos aqueles que se sentem incomodados com a ação profética, evangelizadora e libertadora do Povo de Deus é sinal da autenticidade do seu testemunho e compromisso com a Verdade. Os mártires latino-americanos continuam a derramarem o seu sangue alimentando o grande sonho de uma terra sem males, o sonho da fraternidade de homens e mulheres iguais, libertados no amor de Jesus Cristo.

A Igreja Povo de Deus também terá que enfrentar a tentação sempre palpitante da infidelidade à Verdade diante de projetos meramente humanos e imediatista, que prometem solucionar todos os problemas da sociedade latino-americana: «Não vos deixeis arrastar por qualquer espécie de doutrina estranha» (Heb 13,9). Portanto, a Igreja na América Latina «quer anunciar a verdadeira face de Cristo, porque nele resplandecem a glória e a bondade do Pai que tudo prevê e a força do Espírito Santo que anuncia a libertação verdadeira e integral de todos e de cada um dos homens de nosso povo» (DFP 189).

A Igreja Povo de Deus que caminha para a libertação será sempre convocada a reconhecer que é portadora da salvação – da verdade divina -, e que tem como membros criaturas de carne e osso, homens e mulheres. Estes membros não são anjos imaculados, mas pecadores susceptíveis a todas as limitações humanas, que necessitam constantemente da graça, do amor misericordioso de Deus, para se libertarem de seus pecados. Ela será sempre santa e pecadora enquanto peregrinar neste mundo.

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(1) «Deus dê a eles uma oportunidade de se converterem e conhecerem a verdade» (1Tm 2,25).

(2) «Por amor da verdade que permanece em nós e estará conosco. Que a paz da parte de Deus Pai, e de Jesus Cristo, o Filho do Pai, estejam convosco na verdade e no amor» (2Jo 2-3).

(3) «No mistério de Cristo, Deus baixa até o abismo do ser humano para restaurar por dentro sua dignidade. Oferece-nos assim a fé em Cristo, os critérios fundamentais para se obter uma visão integral do homem que, por sua vez, ilumina e completa a imagem concebida pela filosofia e as contribuições das outras ciências humanas, a respeito do ser do homem e de sua realização histórica» (DFP 305).

(4) «Porque, mesmo conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, mas se perderam em seus raciocínios falsos, e o seu coração insensato mergulhou na escuridão. Pretenderam ser sábios e tornaram-se estúpidos! Eles confundiram o verdadeiro Deus com seres falsos» (Rm 1,21-22.25).

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