CONHECENDO
A REALIDADE ATUAL:
UMA
ABORDAGEM FILOSÓFICA EM TEMPOS DE INCERTEZAS
PROF.
LUÍS COSTA: Boa noite a
todos(as) aqueles(as) que estão participando dessa live. É com muita alegria que estamos nos encontrando neste breve
diálogo filosófico, que pretende ser um momento de reflexão, de mútua ajuda,
diante da situação singular que estamos vivendo.
O
conhecimento e a faculdade/universidade prestam um serviço à sociedade, não
simplesmente colocando um diploma na mão de um concluinte de curso, mas formando
um cidadão consciente, participativo, alguém que vai somar na sociedade nas suas
mudanças para uma melhor situação de vida para todos nós.
Agradecemos a professora Karla,
coordenadora do curso de Pedagogia, da Faculdade do Vale do Itapecuru, que nos
motivou e organizou este encontro. Esperemos que a nossa reflexão possa
contribuir dentro desta temática para uma tomada de consciência da importância
que temos de estarmos fazendo e adquirindo cada vez mais conhecimentos para aprofundar
a nossa visão de mundo, de sociedade, de ser humano. Nesse contexto a filosofia
tem uma função importantíssima no desenrolar desse processo.
O tema que foi proposto “CONHECENDO A
REALIDADE ATUAL: UMA ABORDAGEM FILOSÓFICA EM TEMPOS DE INCERTEZAS”. Existem pessoas
que dizem assim: “Não ligo mais nem a televisão na hora dos telejornais. É
tanto sangue que cai, tanta morte!”. Mas qual é a realidade que estamos
vivendo? É uma realidade bastante questionadora, cheia de incertezas. É um
cenário essencialmente construído de incertezas.
PASSANDO DAS POUCAS
CERTEZAS PARA AS INCERTEZAS EXISTENCIAIS
Se voltarmos a algumas décadas atrás,
creio que a maioria de nós aqui participantes não éramos ainda nascidos, aos
anos que antecederam a Segunda Guerra mundial, encontramos uma sociedade tranquila
na maioria dos países europeus. As pessoas podiam passear, circular nas lojas,
viajar, visitar os amigos, e de repente ocorre uma mudança que vai transtornar
a vida de todos, colocando incertezas não só possibilidade de continuar a
realizar aqueles comportamentos habituais, mas instaura novos questionamentos
conflitivos: como por exemplo, se eu posso ter a liberdade de sair de casa ou
não; se posso praticar a minha religião; se ainda dá tempo de fugir do ataque
militar; como viver isolado de todos.
No dia 6 de agosto de 1945, a primeira bomba
atômica é lançada sobre a cidade japonesa de Hiroshinma, e extermina em questão
de segundos milhares de seres humanos indefesos. Quando um míssil destruía uma
cidade, destruía casa, bares, lojas, arrasava com tudo, e os poucos
sobreviventes ficavam perambulando no meio de todos aqueles destroços, se
perguntando: meu Deus o que será da humanidade? Para onde eu vou? Qual era a
garantia que a partir daquele momento o ser humano não seria extinto da face da
terra? Era uma situação existencial muito complexa, com muita s incertezas.
Hoje nós não temos uma bomba atômica
caído em nossas cidades, mas temos um “vírus atômico”, que exterminou milhares
de pessoas no mundo inteiro. Muitas pessoas conhecidas, do nosso convívio
familiar que foram levadas, sepultadas em vala comum e que não era ainda o
tempo de partir pra eternidade. E diante dessa realidade nos perguntamos: qual
a certeza que posso ter? Só incertezas parece ser a única resposta possível e
racional. Nesse mundo onde parece que o mal vai se apropriando de tudo, qual é
o sentido de você continuar a existir? Não seria melhor o vírus “pegar” todos
nós e por um fim nessa tragédia? Tem gente que pensa assim. Como é que vou
poder viver numa sociedade que institucionalizou a violência, a ganância, a
corrupção, a insegurança econômica? Muitos pensam que essa situação é a
normalidade. Já não causa mais impacto a morte de um ser humano. Se reage com
uma apatia como se fosse “normal”. Ouvi “mataram fulano” não acrescenta nada ao
seu dia a dia. Tornou-se uma coisa banal, irrelevante.
Observamos este impacto destas
incertezas em nossas próprias famílias. Recentemente vendo um noticiário de
televisão apresentava uma jovem que dava um depoimento sobre ele se perguntava:
“Como vou viver agora depois que perdi minha mãe, meu irmão e meu avô na mesma
semana? O que é que me resta da vida?” Até o dia de ontem (02 de junho)
contabilizávamos 6 milhões de casos confirmados de corona vírus, e mais de 376
mil mortos. Pessoas que deveriam estar vivas, mas que morreram. A incerteza que
essa constatação gera no caso do nosso querido Brasil, o presidente Bolsonaro
vetando repasse para os estados e municípios de 8 bilhões e 600 milhões de
reais para ajudar a população para superar e viver durante a pandemia.
E nos perguntamos neste cenário de
incertezas: a crise econômica que se aproxima vai afetar diretamente a quem? As
camadas mais abastadas da sociedade ou a maioria da sociedade, que são os
pobres? Será que vou ter o que comer, o que vestir?
Assistimos nestes últimos dias um outro
cenário que questiona o nosso conhecimento da realidade que são as
manifestações contra o racismo em várias partes do mundo. Quando pensámos que
em pleno século XXI a maioria das sociedades já haviam superado a
discriminação, o preconceito racial contra os negros, ressurge de forma
tempestiva comportamentos de intolerância, de preconceito, de violência, de
racismo.
A
crise política que vivenciamos promovida pelo atual desgoverno de Jair
Bolsonaro gera um clima de incertezas e medos: será que teremos no Brasil uma guerra
civil? Será que vou necessitar empunhar uma arma para me defender? Será que a polícia
vai entrar na minha casa? Será que vamos violentar-me na rua? E a meio tanta
incerteza existem pessoas que pensam em morar num outro planeta. Ir morar em
Marte. Mas a ciência nos diz que por mais que se deseje, por enquanto não é
possível, o nosso planeta é a Terra, a nossa mãe está aqui debaixo de nossos
pés, a Terra.
E a realidade que nós estamos vivendo de incertezas, dessas contradições, não é uma realidade que está só na minha casa. A realidade se estende para além dos nossos olhos, daquilo que ouvimos, tem mais. A realidade não é só o que eu vejo, o que ouço, o que converso com meus colegas e amigos. A realidade é muito mais. Ela vai muito mais além dos olhos, da percepção dos sentidos. E neste tempo em que estamos vivendo a realidade apesar de nos envolver diretamente pode está velada, pode ser que ela esteja escondida, mascarada, e por isso abre-se o espaço para a filosofia. A filosofia é a ciência que vem nos ajudar a perceber a realidade não só com os olhos, com os sentimentos, mas com o intelecto, com a razão, o discurso filosófico, a pesquisa filosófica, o diálogo, a reflexão. A reflexão filosófica é um dos modos do ser humano conhecer a realidade onde está vivendo.
CONHECER
A REALIDADE É UM DESAFIO QUODITIANO PERTUBADOR
A realidade possui muitas dimensões.
Dimensões que as vezes nos assustam, nos incomodam, por que ela possuem em si
mesmas contradições, negações. Por exemplo, você que está estudando e tem um
projeto de vida, constrói toda uma estrutura, e de repente acontece algo que
cancela tudo, como por exemplo, um acidente. Você fica imobilizado, e todos os
sonhos, todos os projetos são cancelados. Podemos observar que essas
contradições estão na essência do ser humano. Você ver de um lado, o bem e do
outro o mal. E nos perguntamos: por que não existe somente o bem, e tem que existe
também o mal? Por que existe o certo e necessariamente o errado? Por que não
tem só a vida e temos que experimentar a tragicidade da morte? O ser e o nada? O
amor e o ódio? A consciência e a alienação? Estas contraposições são inerentes
à existência humana. Ninguém pode fugir. Ninguém pode deixar de enfrentar os
problemas e fugir porque a realidade não nos deixa fugir. Você é que conjetura
na sua mente uma possível “fuga”, um possível desligamento dos problemas
existenciais, da própria realidade. Mas se constata trágica e conflituosamente
que estamos dentro da realidade, nela nos movemos e somos (existimos). O
esforço que fazemos para conhecer a realidade é um esforço que o ser humano faz
desde que começa a se auto-perceber (pensar) como ser existente no planeta
terra.
Lá na Grécia Antiga, aproximadamente no
século IX antes de Cristo, quando apareceram os primeiros filósofos começaram a
se questionar sobre a existência do cosmos utilizando como instrumento de
investigação a sua própria capacidade de racionalizar. As pessoas começam a ser
perguntar: este objeto que está diante de meus olhos é real? Ou é alguma coisa
que criei com minha imaginação? Digo para alguém que o amo e ela responde que
me odeia. O que é o amor? O que é a vida? Através da reflexão foram se
afastando daquelas explicações simplórias, míticas. O mito oferecia uma resposta
imediata, conclusiva, sem deixar espaço para qualquer tipo de questionamento
sobre sua autenticidade ou veracidade.
Mesmo depois de mais de 2 mil anos de reflexão
filosófica sobre a realidade observamos que ainda hoje existem muitas pessoas
que criam e se satisfazem com novas respostas mitológicas para explicação a
problemática da existência humana. Alguém pergunta: Porque você está
desempregado? A resposta é imediata: é porque eu não pude estudar. Tinha que
trabalhar desde cedo que nem um condenado! É uma resposta mitológica. Você está
desempregado é porque existe um sistema (capitalismo) que ti marginaliza, que
impossibilita tua profissionalização, que não oferece uma escola de qualidade
para a classe social menos favorecida economicamente, retira de você a
possibilidade de ter dignidade humana, e não possibilita tua ascensão social. Contudo,
dentro dos parâmetros do seu conhecimento mitológico tudo se justifica na
resposta que se você tivesse tido uma grande oportunidade na vida, tudo seria
diferente. A estrela não brilhou no céu ainda, mas quem sabe se um dia não vai
brilhar?
Para o filósofo essas explicações
simplistas não dizem nada. Nos enganam. Escravizam a mente. Obstruem a
capacidade de conhecer a realidade. É preciso começar a investigar. A pesquisa
dos primeiros filósofos gregos foi direcionada à natureza. E começaram a
compreender que o ser humano só é capaz de conhecer quando ele se distancia de
si mesmo. E busca o “outro”.
Segundo Sócrates, o desejo que temos de
conhecer alguma coisa da nossa realidade passa necessariamente pela mediação da
procura de entendimento de si mesmo (processo introspectivo). Tenho que tentar
entender que sou eu. Esse autoconhecimento é uma tarefa humana complicada,
exigente, irrenunciável. Portanto, segundo a perspectiva de Sócrates não existe
um outro caminho para o conhecimento da realidade que não parta inicialmente de
dentro de cada um de nós. Cada ser humano constrói as suas relações com os
objetos, com as pessoas que convive. Você é que é o construtor – agente
fundante – e gerenciador de todas as relações com a realidade. Assim sendo, não
existe uma realidade-só-em-mim. A realidade é uma construção em relação aos
outros essencialmente porque somos seres sociais – “homo est animal sociale”. A
partir de nossa experiência cada um de nós se torna agente do real.
CONHECER
PARA EXISTIR NO MUNDO DAS CONTRADIÇÕES
O nosso primeiro ato de conhecimento é
percebermos que temos uma mãe. No seio materno é o local no qual ocorre o nosso
primeiro ato de conhecimento: somos gerados e dependemos de alguém. Somos um
ser social. Sócrates, afirmava que era necessário para ocorrer o conhecimento
da realidade que a pessoa dialogasse. Você não pode ficar em casa, com ideias
maravilhosas para transformar o mundo, sua família. Isolado no seu mundo não é
possível mudar coisa alguma. Por isso, para se construir o conceito de
realidade é necessário que você converse com outras pessoas, dialogue expondo
suas convicções e dúvidas, deixe-se questionar, admita com humildade que você
também pode errar no ato de conhecer. Ademais, exige-se ainda que você tenha a
capacidade de somar as vivências dos outros na sua vivência pessoal.
O conhecimento nesta dinâmica dialética
passa a ser inevitavelmente um processo de construção comunitária. Quanto mais
você dialogar, confrontar-se com o conhecimento do outro, maior será a sua
visão da realidade (amplitude cosmológica do real). Sócrates disse que devemos
colocar em discussão as nossas “verdades” porque nenhuma verdade é
inquestionável (somos seres meramente humanos e não uma divindade cósmica).
Cada um de nós possui a sua verdade que deve ser somada a verdade dos outros,
porque como vimos anteriormente, a verdade é uma busca, uma construção, uma
apropriação comunitária.
O saber acadêmico se caracteriza como
uma saber que é produzido por um grupo de pessoas que estão juntas elaborando,
testando, formulando e reformulando
metodologicamente o conhecimento de um determinado aspecto de um
fenômeno da natureza para compreende-lo. É um processo de construção do
conhecimento da realidade no nível da ciência.
UM TEMPO DE CONSTRUÇÃO DE VERDADES NOVAS
Necessitamos urgentemente repensar as
nossas “verdades”, o modo como colocamos na cabeça essas “verdades”, procurando
identificar quem é que as colocou. Quem é que fez e faz a minha cabeça? Ou
melhor, quem é que estruturou a minha mente para pensar de modo e não de outro?
Foi um professor? Foi minha mãe ou meu pai? Um amigo? Ou fui eu mesmo que criei
esses conceitos e percepções do real destorcidos? Quem formatou a minha mente
digital? Sócrates nos convida a colocar todas essas “verdades” tão seguras,
inflexíveis, dogmatizadas, em dúvida. Dentro de cada verdade está a abertura ao
questionamento.
A reconstrução do pensar a realidade é
possível por causa desse movimento histórico-existencial do ser humano que o
projeta sempre para além dele mesmo, para fora de-si-mesmo. Esse o momento do
será que é mesmo assim o que penso que seja que é? Nessa busca o ser humano vai
desconstruindo aquilo que pensávamos que era a verdade última para gerar a
verdade nova.
Neste tempo de incertezas as verdades
engessadas, caducadas, sustentadas em tradições culturais obsoletas,
perenizadas em princípios religiosos defasados historicamente, podem não
contribuir efetivamente para se chegar à verdade nova suscitada pelo novo tempo
que estamos vivendo. Não podemos ter medo de desconstrui-las e reconstruí-las à
luz dos novos desafios e urgências deste período de incertezas, nos projetando
para vivermos este novo momento da existência do ser humano. É interessante
também observar que não podemos levar para todos os momentos de nossas vidas as
mesmas verdades como solução de todos os mesmos e diferentes problemas que
colocam em xeque a possibilidade da continuidade de nossa existência no planeta
Terra.
PROFESSORA KARLA:
Essa nova verdade nos possibilita de estarmos aqui em tempo real, virtualmente
falando, a filosofia promove a reflexão das verdades que eu vivo a partir das
convicções que trouxe comigo da educação familiar, do convívio social que tive.
Hoje podemos nos perguntar: que novas verdades são estas? O que é que eu estou
aceitando como verdade? A filosofia motiva esta reflexão. A questão do eu e os
outros é uma questão atual a ser discutida com urgência. Hoje a
responsabilidade de minha vida já não é só minha. Por isso é muito importante a
filosofia tematizar esse processo de construção e reconstrução das minhas
verdades segundo esta perspectiva que está sendo abordada nesta live. É interessante observar que os
jovens, os pais, todos aqueles que estão nos assistindo necessitamos perceber
que vivemos um outro momento histórico permeado de dúvidas, de incertezas de
como poderá ser o amanhã. Então podemos perguntar: que perspectiva a filosofia
oferece ao estudante universitário para pensar, refletir a própria realidade
vivenciada para não desesperançar e construir o seu hoje e um amanhã melhor?
PROF.
LUÍS COSTA: Percebemos
que a visão de mundo com a qual os novos acadêmicos iniciam o curso
universitário necessita ser mudada. Hoje não é possível você frequentar um
curso universitário com o intuito de apenas adquirir depois de 5 anos um
diploma. É uma motivação insignificante.
UM
NOVO OLHAR FILOSÓFICO DIGITAL DO MUNDO
A partir da ótica das incertezas faz-se
necessário estruturar um projeto de cidadão, de ser humano, que deve ser pesquisado,
organizado, reconceituado, para os tempos novos que estamos vivendo. Aquele
modelo de jovem das décadas anteriores está superado.
As novas relações digitais geraram o
novo modelo de jovem: o jovem digital. Portanto, não é possível pensar em um
processo de educação, um projeto de vida, que exclua por exemplo a dimensão
digital da vida.
Essa dimensão pode ser considerada como
um instrumento que possibilita a relação entre o indivíduo e o conhecimento da
realidade, não de uma maneira passiva, acomodada, descomprometida, mas coloca
você-ação, você-transformação dentro do mundo que a realidade digital serve de
mediação. Ao lado das diversas dimensões do ser humano (social, lúdica,
religiosa, econômica, social, cultural, política, etc) essa nova dimensão
implementa um novo aspecto às relações sociais: as relações sociais digitais
(codificada pela linguagem digital).
Quando a filosofia aborda esse tema não
se trata de tematizar mais um modismo acadêmico, mas de destacar esse novo
instrumento existencial de construção do real. Durante este período da
pandemia, marcado por todo tipo de incertezas, as relações sociais mantidas com
familiares, amigos, através da presença-digital, que substitui a
presença-física, mantém as pessoas digitalmente irmanadas independe do que são
e de onde estão. Esse processo não tem mais retorno. O mundo novo que está se
configurando é um mundo tecnológico e digital. E a filosofia que acompanha esse
“changing world” é a filosofia digital.
Esse novo modo de apreender a realidade
realizada pela filosofia digital serve-se da mediação do instrumento digital.
Consequentemente, o conhecimento da realidade será diferente de outros momentos
históricos onde se utilizava para essa finalidade o livro, o jornal, a revista,
etc. O contato em tempo real com o objeto de conhecimento no qual você está
procurando desvelar sua verdade favorece a percepção de suas várias
possibilidades existenciais.
Hoje podemos pesquisar com rapidez e
eficiência por exemplo as várias concepções sobre um determinado fenômeno
identificando os prós e os contra. Isso traz uma contribuição extremamente
significativa para a tarefa do pensar filosófico, visto que ele é na sua
essência provocar discussão, iniciar a conversa, questionar. Não cabe a
filosofia necessariamente o papel de apresentar resposta definitivas sobre
tudo, porque resposta se constroem para uma situação pontual, temporal; e
quando essas respostas assimiladas já não servem mais para responderem de modo
a-temporal a todos os problemas e questionamentos que possam surgir no futuro.
Logo, resposta se constroem, e quando ela responde já não servem mais, e é
necessário construir novas respostas porque a realidade está em processo, em
mudança, em constante construção, não é possível fixa-la como uma obra de arte
num museu. A realidade é pura dinamicidade, é histórica, é factual, é puro
movimento-transformação como asseverava o filósofo e historiador grego
pré-socrático Heráclito (“Nada é permanente, exceto a mudança”).
A tarefa do filósofo é tentar, na medida
do possível, acompanhar o processo continuo de mudança da realidade. Tal tarefa
é empenhativa e desafiadora porque os conceitos utilizados para definir a
realidade, em um certo momento, tendem a se fixar, criar uma crosta, ficando
difícil move-los.
O conceito que temos hoje de sala de
aula, de aluno, de direção acadêmica, de professor não é mais o mesmo de 20
anos atrás. Houve uma mudança radical, necessária. O momento de mudanças no
campo das incertezas em que vivemos a figura do professor deve ser
profundamente repensada: como ser professor e transmitir otimismo, certezas,
novos significados, apresentar um mundo existencialmente viável no espaço
pedagógico da sala de aula? Sem dúvida alguma nessa tarefa papel indispensável
deve ser protagonizado pela filosofia enquanto instigadora da busca de novas verdades.
Cabe a filosofia sintetizar e dialogar
com as outras formas de conhecimento da realidade quando busca a verdade: o
conhecimento do senso comum, o conhecimento científico. O filósofo não possui
um supra-conhecimento da realidade, mas busca no exercício de pensar sintetizar
a contribuição das outras formas de pensar e agir dentro da realidade: ele soma
o seu conhecimento ao conhecimento das pessoas comuns, ao conhecimento da
ciência especializada, e coloca tudo em pauta de discussão. Por meio deste procedimento
metodológico a filosofia descontrói, como por exemplo, todo tipo de fanatismo
que impede a desvelação e acesso à realidade. É interessante a este respeito o
que dizia Ariano Suassuna “O fanatismo e a inteligência nunca moram na mesma
casa”. O ato de raciocinar demonstra que a realidade se mostra para o sujeito
cognoscente não somente a sua visibilidade materializada (o imediato), mas ela
é também aquilo que não aparece se expor (mediato), sua dimensão de devir
existencial.
A realidade apresenta sempre várias
faces. Cabe ao filósofo ajudar as pessoas a refletirem sua vivência existencial
de cada dia como um exercício de sua cidadania, através do qual é possível
criar (transformar) o mundo, estabelecer relações sociais para em que
objetivamente assegurem a existência de uma sociedade mais harmônica,
solidária, justa e fraterna. Cabe aqui uma pontualização importante: a
filosofia marxista advoga como função primordial do filósofo
práxis-transformação do pensar: o filósofo é chamado a conhecer a realidade
(sociedade) para transformar. É inadmissível uma filosofia meramente
contemplativa da existência humana sem comprometer-se com as suas reais e
superáveis contradições e negações.
A missão de transformar o mundo extrapola a esfera da mediação do poder político dentro da sociedade. Sócrates delimitava a importância do espaço introspectivo da mudança: ela começa dentro de mim, dentro de você. Porém, não se estagna aí, ela tem o seu espaço para-além-de-mim. Nos dois espaços o agente de transformação é o ser humano.
Muitas pessoas pensam que somente quem
detém o poder político e/ou econômico na sociedade é que podem e são
responsáveis pelas mudanças. Não vão transformar absolutamente nada. Buscam
incansavelmente satisfazer seus próprios interesses. A verdadeira transformação
vem da base: da minha conversa com os amigos, no encontro no bar, no passeio no
shopping, na reunião da Associação do bairro, na discussão no comitê do partido
político, na reunião do grupo de oração, no congresso acadêmico, na passeata,
na manifestação popular do abaixo-assinado, etc. É nesse movimento dialético de
idas e vindas de ideias e ações que o processo de transformação acontece
atingindo os objetivos da gestação de uma sociedade que ofereça condições de
existência humana digna e justa.
Neste mar de incertezas não podemos ser
portadores do medo, da visão extremamente pessimista da vida, da realidade. Não
podemos ser anunciadores de catástrofes naturais, propagadores da ideia que o
mundo não tem mais jeito, tudo está perdido, o caos se estabeleceu. A
perspectiva filosófica neste momento é a da superação diante de uma nova
conjuntura social que exige novo modo de pensar e se fazer as coisas (agir
sobre a realidade em que vivemos).
Quando o filósofo reflete sobre uma
determinada temática assume a postura não de uma pessoa desesperada,
angustiada, depressiva, traumatizado. Ele se empenha em buscar a superação:
compreender para transformar. A reflexão filosófica não vem para nos
amedrontar, ofuscar o foco principal do problema que está afetando a todos, ou
criar uma aversão ao ato de pensar.
Muitas pessoas tentam construir os
fundamentos de suas ideologias a partir da não-verdade, da negação da
realidade. Deste esforço surgem novos mitos, e são também reconstruídos velhos
mitos em quase todos os âmbitos da vida social. Podemos observar esse movimento
de um modo particular no período eleitoral. Paira no imaginário mitológico a
certeza que se deve votar no determinado candidato que diz ser a solução para
todos os problemas que a comunidade enfrenta no seu dia a dia. A filosofia
desmascara essa visão mitológica afirmando que a “solução” é você, as
organizações comunitárias, os grupos, as ações coletivas e individuais que
buscam a superação do problema.
A tentação às vezes de encontrar
respostas imediatas, supérfluas, definitivas é muito grande. Porém, não podemos
retornar à experiência da caverna do filósofo Platão. É impressionante
verificar como muitas pessoas adoram viver na caverna de Platão em pleno século
XXI. Para elas viver é viver no mundo das aparências, das incoerências, no
mundo das sombras. Não percebem ou relutam em reconhecer que a caverna
está literalmente lacrada, inacessível,
porque viver é existir. É existir nesse mundo, nesta realidade como ser humano.
As tentativas de correr para se proteger das intempéries e vicissitudes da vida
dentro da caverna é completa alienação do real. A pseuda “vida” dentro da
caverna de Platão é cômoda, é sombra, tudo parece que é, mas não é, nada
incomoda, se estar bem. A pessoa mitologicamente acomodada nada questiona. A
caverna parece ser uma paradisíaca “superproteção” contra tudo e contra todos. Tudo
parece ser, mas não é. Nem um raio atinge seu interior. Perfeita tranquilidade.
Essa situação por mais interessante que possa parecer não é definitivamente a
existência humana real. A existência humana é o ato de colocar-se dentro da
realidade, e só possível vive-la se for para questionar, para compreender, para
mudar, para melhorar.
A filosofia é um convite a cada um de
nós a saímos do mundo da mentira, da máscara, da fantasia surreal, da sombra,
do mito, e num ato consciente buscar vislumbrar de olhos abertos, com uma
inteligência ágil e crítica, com os pés no chão da história humana, a realidade
em que vivemos: olhar para os problemas
sociais, políticos, familiares, nacionais, mundiais. A condição de
enfrentamento é a exigência de existência. Contemplar a situação a que chegamos
e colocar-se em movimento em direção para supera-la explicita filosoficamente o
próprio sentido da vida: viver é existir num constante processo de mudanças. A
vida humana não é um simples movimento cósmico de início, meio e fim.
Recentemente podemos averiguar a
concepção mitológica do significado da vida quando o presidente do Brasil, Jair
Bolsonaro, numa entrevista questionado sobre o número crescente de morte
causada pelo covid-19, afirma que todo mundo um dia vai morrer. Portanto, essa
preocupação com o número de mortos é insignificante. A verdadeira preocupação é
não deixar a economia do país parar. Sabemos que o processo biológico do corpo
humano é sequencial – nascer, desenvolver, morrer. O grau de desumanidade deste
tipo de pessoa é incomensurável. Porém, uma coisa é você morrer de causas
naturais, e outra, é você morrer antes do tempo por causa de um genocídio
premeditado, planejado em nome da salvação da economia.
O processo de reconstrução de mundo de
incertezas constitui-se num momento impar, especial para se repensar todas as
práticas pedagógicas, o modo de ser da universidade, a relação da universidade
com a sociedade, a grade curricular, os conteúdos, tudo deve ser e entrar nesta
dinâmica de revisão prospectando esta nova sociedade emergente. A filosofia com
sua vertente digital será um instrumento indispensável no processo efetivação
de mudança. O mundo muda filosoficamente. Todo saber humano se move sob o húmus
da filosofia.