PROSPECTIVAS DA IGREJA COMO POVO DE DEUS NA AMÉRICA LATINA (Parte II)


1.1.2. A VERDADE ANUNCIADA PELA IGREJA
Cabe a Igreja aprofundar a verdade sobre Jesus Cristo, que penetrando na história dos homens e mulheres latino-americanos os comprometerá com a construção do Reino de Deus, que exclui toda forma de injustiça, de opressão, que aprisiona e destrói a imagem e semelhança de Deus. O seu olhar sobre a realidade é um olhar crítico que penetrando na realidade de miséria e sofrimento no qual vive milhões de latino-americanos, denuncia esta situação estruturalmente pecaminosa.

Do seu compromisso com a Verdade nasce a exigência da Igreja dialogar com as verdades que são construídas pelos homens e suas instituições no processo de percepção do mundo e na busca de satisfação de seus interesses e necessidades. Demonstrando a parcialidade destas «verdades» ao captarem somente algumas dimensões da realidade e a pretensão de tornarem-se verdades universais, somente a Igreja vislumbra para o homem a verdade de sua integralidade. E mais, a Igreja questiona as conseqüências práticas e teóricas destas «verdades» para o homem. Constatamos que é uma tarefa muito difícil se consideramos a questão epistemológica hoje. Por isso, da Igreja se requer a superação da tentação de cair no relativismo conceitual que vive a sociedade atual, onde cada indivíduo constrói a sua verdade, conforme os seus interesses e suas necessidades. Na visão relativista a verdade depende unicamente do indivíduo: aceitá-la ou rejeitá-la é tarefa estritamente pessoal. A verdade da qual a Igreja é portadora não pode ser considerada como uma verdade a mais no meio de tantas outras verdades dos homens. Portanto, a Igreja está comprometida em manter-se fiel à verdade de Jesus Cristo sem jamais adulterá-la para conseguir benefícios e privilégios.

1.2. O CONFRONTO COM A PÓS-MODERNIDADE E O PROCESSO DA GLOBALIZAÇÃO

A Igreja depois do Concílio Vaticano II realizou um esforço para dialogar com a modernidade. A Igreja já não podia continuar a viver no século XX com um modo de ser e de pensar cristalizados nos séculos passados, fechada ao progresso e desafios suscitados pelo confronto com o mundo moderno. O tempo da pós-modernidade é o tempo do diálogo e de confronto e não da imposição dogmática.

A Igreja da Nova Evangelização vive dentro do inevitável processo de globalização, e é dentro deste contexto histórico que é chamada a evangelizar o mundo pós-moderno e globalizado. O processo de globalização do mundo segundo alguns teve início nos anos 80, quando a tecnologia de informática foi associada à tecnologia das telecomunicações. Outros acreditam que a globalização iniciou um pouco mais tarde com a queda das barreiras comerciais. Quanto ao conceito de globalização não existe uma concordância conceitual admitida por todos. Para A. Seela, a globalização é um «processo econômico com apoio político, militar e cultural. Trata-se de uma nova etapa de acumulação na sua fase neoliberal, que começa na metade dos anos de 1970, o que se chama de consensus de Washington. Em outras palavras, é um movimento da sociedade capitalista neoliberal com o mero objetivo de aumentar a acumulação, globalizando o mercado, ou seja, transformando o mundo em um grande mercado livre» (1). Dentro desta perspectiva, a globalização é um processo que envolve todos os povos e nações, desenvolvido pelo capitalismo moderno, para colocar nas suas economias as bases do mercado livre, e de modo garantindo a sobrevivência e uma nova etapa do sistema capitalista.

O Foro Social Mundial de Porto Alegre 2001 – Chamados à mobilização – destaca as conseqüências do processo de globalização para os povos: «A globalizacão reforça um sistema sexista, excludente e patriarcal. Incrementa a feminilização da pobreza e exacerba todas as formas de violência contra as mulheres. A igualdade entre homens e mulheres é uma dimensão central de nossa luta. Sem esta igualdade, outro mundo jamais será possível.

A globalização neoliberal desata o racismo, dando seguimento ao verdadeiro genocídio de séculos de escravidão e colonialismo, que destruíram as bases civilizatórias das populações negras da África. Chamamos a todos os movimentos a solidarizar-se com o povo africano dentro e fora do continente, na defesa de seus direitos a terra, a cidadania, a liberdade, a igualdade e a paz, mediante o resgate da dívida histórica e social. O tráfico de escravos e a escravidão são crimes contra a humanidade.

A globalização neoliberal destrói o meio ambiente, a saúde e as condições de vida do povo. A atmosfera, a água, a terra e também os seres humanos são transformados em mercadorias. A vida e a saúde devem ser reconhecidas como direitos fundamentais e as decisões econômicas devem estar submetidas a este princípio» (2).

Os beneficiados com o processo da globalização são as nações ricas. Detendo o monopólio da tecnologia provocam nos países mais pobres a desvalorização das matérias-primas que exportam, e como conseqüência, permanece no atraso tecnológico. Portanto, o impacto da globalização, embora diferenciado, demonstram-se negativos para os países da periferia do sistema capitalista. Desprovidos e impossibilitados de um desenvolvimento tecnológico-industrial, sem um crescimento significativo do mercado interno e a permanente instabilidade política inviabiliza a sua inserção no processo para poder usufruir seus benefícios (3).

A Igreja ao confrontar-se com este novo cenário mundial na sua tarefa de evangelizar os povos latino-americanos denunciará toda e qualquer forma de colonialismo. Somará suas forças a luta empreendida por todos os movimentos sociais que dentro e fora do Continente, lutam pela defesa do direito a terra, pelo exercício pleno da cidadania, pela liberdade, pela igualdade e pela paz entre os povos. Deste modo, a Igreja procura resgatar a dívida histórica e social que tem para com cada homem e mulher que vive na Terra-mãe. Portanto, o Povo de Deus procura dialogar com todas as instâncias da sociedade civil e religiosa para que possa evangelizar na América Latina caminhando e procurando construir uma nova história de libertação, de protagonismo e vida digna para todos.

1.3. AS IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DA FÉ

A vivência da dimensão política da fé foi sempre para a Igreja na América Latina um grande desafio. Diante de tanta injustiça, de tanta escravidão e opressão, como anunciar a salvação de Jesus Cristo? O testemunho de uma fé desencarnada da história, das lutas e dos sofrimentos dos povos latino-americanos seria uma traição ao projeto libertador de Jesus Cristo. Por isso, os cristãos latino-americanos procuram iluminar os seus projetos e intervenções políticas a partir da fé que professam.

Existe no Continente um conflito sempre latente entre aqueles que consideram a fé desvinculada da vida. A Igreja segundo esta visão não tem autoridade alguma para intervir na vida política do povo, da sociedade. O campo restrito da ação missionária da Igreja é a «sacristia». Para a classe dominante «política é coisa de político». A Igreja deve se ocupar com suas missas, romarias, novenas e procissões.

O conflito entre fé e política deve ser analisado num nível mais profundo. Não se pode ficar na análise do fenômeno da aparente independência entre a esfera religiosa e a esfera política. Na realidade, o conflito tenta mascarar os interesses individualistas e egoístas da classe dominante, que não deseja que os oprimidos tomem consciência de sua realidade, e que motivados e fortificados pela sua fé, lutem buscando sua libertação.

A experiência de uma fé politicamente engajada traz consigo exigências de uma ética política que reflita os valores e as opções evangélicas. Conduz ao exercício democrático da cidadania como elemento fundamental de forjamento de uma nova realidade político-social nos países latino-americanos.

Cabe ao Povo de Deus contribuir com a educação política libertadora do povo através da participação ativa nos partidos políticos e nos seus programas, da contribuição com a inspiração evangélica dos princípios e diretrizes dos projetos políticos, que defendam os interesses dos menos favorecidos e de cursos de conscientização e educação política popular.

1.4. AS OPÇÕES PASTORAIS

Os documentos da III Conferência Episcopal de Puebla e o da IV Conferência Episcopal de Santo Domingo caracterizam-se como documentos de cunho pastoral, direcionados a estimular, dinamizar a prática evangelizadora do Povo de Deus latino-americano. São documentos de cunho eminentemente pastoral. É oportuno salientar que o episcopado ao fazer uma opção pastoral não está se negando a ver outros aspectos e urgências pastorais, teológicas ou adiando a sua intervenção na vida eclesial.

As opções pastorais dos documentos não podem ser analisadas como intervenções circunstanciais, modistas ou oportunistas, em que a Igreja tenta levar vantagem. São apelos, atitudes proféticas, momento de conversão para a Igreja e para o mundo. O clamor do oprimido torna-se o clamor da Igreja e suscita a intervenção divina.

No documento da II Conferência Episcopal de Medellín encontramos algumas opções pastorais: pela justiça, pela paz, pela família, pela educação, pela juventude, pela pastoral das massas, pela pastoral das elites, pela catequese, pela liturgia, pelos movimentos leigos, pelos sacerdotes, pelos religiosos, pela formação do clero, pela pobreza da Igreja, pela colegialidade e pelos meios de comunicação social (4). Por sua vez, o documento da III Conferência Episcopal de Puebla assume expressamente a terminologia opção pastoral. Diante da realidade pastoral do Continente os bispos escolhem e priorizam duas opções: a opção preferencial pelos jovens e a opção preferencial pelos pobres (cf DFP 1134-1205). Ao efetivar estas duas opções os bispos não pretendem deixar de lado os adultos e as crianças, e nem os ricos.

No esquema do DFSD da IV Conferência Episcopal de Santo Domingo aparecem três momentos distintos: no primeiro, apresenta um determinado tema; no segundo, apresenta os desafios em relação ao tema; e no terceiro, apresenta as linhas pastorais. No documento encontramos a opção preferencial pelos pobres não como um tópico específico, mas contextualizado em diferentes momentos, como por exemplo, quando fala do empobrecimento e da solidariedade, na parte dos desafios (cf DFSD 179). Assim sendo, o documento assume a terminologia linhas pastorais e não opções pastorais.

1.5. O DIÁLOGO COM OUTRAS RELIGIÕES E SEITAS

A perspectiva ecumênica do Concílio Vaticano II colocou a Igreja numa atitude de diálogo e reconhecimento de sua missão de realizar o grande desejo do coração de Jesus: «Pai que todos sejam um» (Jo 17,21). A intencionalidade da ecumenicidade do Concílio exprime o desejo da Igreja estabelecer um diálogo construtivo com as outras religiões e seitas.

A primeira dificuldade que deparamos é de caráter metodológico: como estabelecer o conceito de religião e seitas? Que critérios podem ser considerados válidos para elaborar uma distinção que não camufle os preconceitos, a discriminação religiosa, e inviabilize o processo de aproximação e comunhão?

Para alguns estudiosos das religiões fazer a distinção entre religiões e seitas é uma atitude preconceituosa, excludente. As expressões religiosas de um povo ou de uma raça, expressas em gestos e ritos, codificadas em escritos e livros sagrados constituem sua religião, sua fé, parte de sua cultura religiosa. O critério histórico da antiguidade dos mistérios revelados em uma determinada religião demonstra-se insuficiente, especialmente num continente que tem apenas 500 anos de inserção na história ocidental.

É importante perceber que os paradigmas que estabelecem os critérios para distinguir uma religião de uma seita são codificados por membros das religiões dominantes.

Na América Latina a realidade religiosa dos nossos povos é bastante complexa e diversificada. O processo de mistura das raças ocorrido durante a exploração do Continente pelos portugueses e espanhóis se estendeu também à dimensão religiosa. A cultura e a religião dos negros provenientes da África, a cultura e a religião dos habitantes autóctones misturados com a cultura e religião trazidas pelos brancos colonizadores gerou uma mistura, ou melhor, um modo particular de viver a fé miscigenada. A mistura inevitável de diferentes elementos religiosos destas três experiências religiosas levou o homem latino-americano a conceber o seu universo religioso povoado de conceitos contraditórios e práticas acomodadas segundo a necessidade espiritual de cada indivíduo. E no plano social a legitimar a divisão de classes onde os ricos detêm a legalidade do seu culto religioso e os pobres não inseridos nos cultos proibidos das seitas.

Dentro deste contexto o conceito religião parece colocar na situação de legalidade determinado grupo religioso e o conceito seita colocar um determinado grupo religioso na situação de clandestinidade. Na verdade os dois conceitos parecem situar as seitas na situação de grupo de resistência e marginalidade e as religiões na situação de grupo legalmente estabelecido e juridicamente legalizado no mundo das religiões.

«Para a Igreja latino-americana aparece o Jesus enviado pelo Pai ao mundo, fazendo-se presente na história dos povos para libertá-los de todas as escravidões as quais o pecado lhe mantém sujeitados: ignorância, miséria, fome, injustiça, opressão, divisões, marginalização, ódio... A sua é uma ação libertadora integral e de promoção do homem em todas as suas dimensões. Aparece um Jesus que, consciente desta sua missão, se junta com os “crucificados da história”, e, não tolerando nenhuma injustiça, oferece a “verdade que liberta” e “o amor que redime”. Cada povo, cada homem tem necessidade Dele para realizar a própria existência» (5). Para os cristãos, especialmente os neo-pentecostais, a hermenêutica da missão de Jesus recebe uma interpretação puramente individualista e reducionista. A preocupação principal de Jesus é curar, sanar os sofrimentos e as angústias imediatas das pessoas. A sua ação taumatúrgica resume sua missão. A dimensão política da mensagem de Jesus e as exigências éticas são menosprezadas, e se enfatizada por demais coloca em risco o crescimento número do grupo religioso. O Jesus captado por estas instâncias religiosas, mediante a leitura fundamentalista do Evangelho, é um Jesus a-histórico, desconectado da problemática social-religiosa de seu tempo, e consequentemente, também do nosso tempo. Assim sendo, não existe um desejo verdadeiro de descobrir o rosto do Cristo sofredor, padecente nos milhões de pobres, doentes, carcerados, abandonados da América Latina.

Existe uma sensível rejeição ou menosprezo para com a revelação de Jesus Cristo como o Libertador, capaz de vencer todas as escravidões que afligem os pobres do Continente, de direcionar a libertação e animar os cristãos a se tornarem agentes no processo de sua própria libertação. Afastando-se desta perspectiva os neo-pentecostais transferem o centro de compreensão da vida, do agir e do destino de Jesus à sua ação taumatúrgica como afirmamos acima.

O Povo de Deus busca estabelecer canais, meios de comunicação, que abram espaço para se construir um diálogo verdadeiro e respeitoso com as demais denominações religiosas sem, contudo, perder, ou renunciar a sua própria identidade. Tal impostação provoca necessariamente um novo modo de viver a fé na América Latina provocando muitos ataques e perseguições.

Tal impostação provoca necessariamente um novo modo de viver a fé na América Latina provocando muitos ataques e perseguições ao Povo de Deus.

Consideramos que para a construção de um diálogo frutuoso da Igreja com as outras religiões e seitas algumas dificuldades devem ser afrontadas pelos cristãos no esforço de transformar o ecumenismo numa prática eclesial:

a) A formação bíblico-teológico-pastoral dos membros das seitas. Esta formação é fundamental para poder estabelecer um diálogo fundamentado numa séria argumentação histórica e científica. As bases de discussão que possam validar a experiência do diálogo ecumênico, especificamente com os neo-pentecostais, estão na reflexão bíblico-teológico-pastoral. O problema parece insuperável porque a prática desta reflexão nestes grupos religiosos é de caráter fundamentalista, que na maioria das vezes inviabiliza o diálogo com os cristãos católicos.

b) As Igrejas e comunidades não podem ignorar os riscos que o diálogo impõe e as exigências de conversão à unidade. É necessário que os católicos estejam atentos a manter sua identidade, sem abdicar as verdades fundamentais da fé católica na hora do diálogo. A conversão à unidade não pode ser compreendida como o retorno de todos os cristãos, ou de todos os homens e mulheres ao seio da Igreja Católica Romana, e uma consequente extinção de todas as outras religiões.

c) O proselitismo religioso das seitas e de algumas igrejas deve ser superado através do desmascaramento de suas verdadeiras intenções e um conseqüente chamado à conversão na unidade.

A pluralidade de expressões religiosas da sociedade pós-moderna latino-americana. O fenômeno da explosão das seitas (6) está intimamente relacionado com o fenômeno da expansão da pluralidade religiosa do mundo pós-moderno.

Algumas estratégias podemos esboçar com um olhar de esperança, que um dia seja possível estabelecer um verdadeiro e construtivo diálogo ecumênico entre os cristãos latino-americanos. A partir deste diálogo ecumênico os cristãos da América Latina possam ser para todos os homens e mulheres ameríndios um incontestável testemunho de unidade. Para que isto aconteça é necessário:

a) Buscar construir um diálogo baseado no respeito mútuo e na tolerância. Não podendo momentaneamente vencer os obstáculos de uma reflexão doutrinal crítica é necessário estabelecer entre as igrejas e seitas uma atitude de respeito mútuo e de tolerância que garanta um mútuo conhecimento;

b) Acentuar os elementos doutrinais que são comuns e minimizar os pontos de divergência. Buscar o que une e não o que pode dividir. A evangelização é o ponto comum de encontro para todos os cristãos. Todos receberam o mesmo mandado: «Ide pelo mundo e anunciai o Evangelho a todas as criaturas» (Mc 16,15);

c) Partilha de um projeto missionário comum, em que a caridade e o serviço ao pobre, sejam o critério teológico de interpretação e compreensão da pessoa e da missão de Jesus de Nazaré (7). Portanto, o projeto missionário vivido por cada igreja não é o projeto daquela determinada denominação religiosa, mas o projeto missionário de Jesus Cristo: a instauração do Reino de Deus na terra.

Os dados do Censo 2000 registram que o catolicismo brasileiro, embora que ainda amplamente majoritário, está declinando quanto ao número de fiéis. O número dos brasileiros que se declaravam católicos decresceu de 95% (em 1940) para 89% (1980) e 84% (1991) até chegar os 74%. Os diversos grupos evangélicos cresceram de 9% para 15% nos últimos dez anos. A tendência e a prospectiva de declínio para o próximo decênio continuará a mesma.

A Igreja não pode pensar num neo-projeto de cristandade na América Latina. Os católicos deixaram de ser maioria e deverão aprender a conviver numa sociedade pluri-religiosa, onde os espaços de atuação, influência e sobrevivência das diversas religiões tendem a se igualar entre os grupos religiosos majoritários e minoritários.

1.6. A ASCENSÃO DOS MOVIMENTOS ESPIRITUALISTAS E SUAS IMPLICAÇÕES ECLESIAIS

Assistimos neste final de milênio um interessante fenômeno religioso na América Latina: o aumento do número de pessoas que procuram uma experiência religiosa de caráter espiritualista (8). Trata-se da ascensão dos movimentos espiritualistas de tendência neo-pentecostal.

O sociólogo da religião Antônio Flávio Pierucci, partindo da análise do censo 2000, realizado no Brasil, é da opinião que a estratégia usada pelo papa João Paulo II para deter a queda do número de católicos, põe em questão os resultados da violenta despolitização levada a termo pelo papado no combate a Igreja «progressista» e a Teologia da Libertação. Segundo o sociólogo é questionável se tal estratégia serviu realmente para deter esta queda ou foi mais um motivo de seu aceleramento.

As seitas que mais cresceram neste período são caracterizadas como um sistema de crenças que prometem uma resposta imediata, infalível e materialista. A recompensa na vida eterna já não sensibiliza as multidões, as lamúrias do vale de lágrimas são postos de lado. O importante é que o fiel encontre na religião um modo para obter seguramente vantagens aqui e agora: emprego, cura de doença, vida decente, etc. Não interessa muito as vantagens e as promessas que irão ser realizadas na vida eterna. Interessa a religião que pode dar ao fiel a felicidade segura e imediata.

O acento na vivência religiosa é posto no aspecto individual. A abordagem sociológica do coletivo, que marcou a atuação do catolicismo progressista na sua experiência de pequenas comunidades de base e sua decisiva luta coletiva para mudar as estruturas de pecado social, é substituída por uma atitude ad intra. O crente é chamado a intervir somente na sua vida e dos seus familiares. Está, portanto, fora de sua experiência religiosa qualquer compromisso com a transformação da sociedade.

O frenesi místico, irracional, que marca os cultos de massa protagonizados por algumas igrejas e seitas, chamados de show místico, na verdade escondem o essencial das novas religiões que no fundo são profundamente materialistas. As características da mentalidade de nossa época: individualista, materialista, formalmente irracional, radicalmente conservadora em sua descrença na possibilidade de reformar as estruturas da economia e da sociedade são facilmente percebíveis.

As conseqüências na vida e na caminhada da Igreja no Continente são ainda imprevisíveis. De um lado muitos cristãos católicos vêm neste movimento a tábua de salvação e resgate dos católicos afastados da sua Igreja, e do outro lado, as CEBs tentam não capitular mantendo seu projeto de vida e engajamento comunitário, se tornando na Igreja uma experiência minoritária e considerada por muito conservadora. Diante desta realidade é que alguns estudiosos chegaram a falar da morte das CEBs e de todo um movimento de despolitização da Igreja na América Latina.

Na experiência religiosa pentecostal encontramos alguns elementos que consideramos importantes para compreender a configuração dos movimentos espiritualistas disseminados no Continente nos anos 90, e que são indispensáveis para podermos compreender a ascensão dos movimentos espiritualistas católicos e suas implicações eclesiais. Entre eles destacamos: a prioridade ao emocional e não ao compromisso efetivo, ao engajamento nas lutas sociais; o individualismo; o aspecto festivo para mexer com o emocional.

1.7. O RELATIVISMO RELIGIOSO: A SALVAÇÃO ESTÁ EM QUALQUER LUGAR

A prática das religiões pós-modernas apregoa o relativismo religioso. A questão da validade ou não de uma determinada religião no oferecer e realizar a salvação do fiel é considerada ultrapassada, e colocada ao nível decisional subjetivista de cada pessoa. A escolha de uma religião para praticar é totalmente conduzida por princípios pessoais. A religião serve na medida em que supre as expectativas espirituais e físicas da pessoa individualmente.

Na concepção do relativismo religioso a religião é um assunto estritamente pessoal. E todas elas são consideradas um caminho seguro e eficaz que conduz a Deus ou a outras entidades divinas. O importante é que o adepto sinta-se realizado, feliz dentro daquela religião ou seita.

Os bispos que participaram da Assembléia para a América constatam: «Como no areópago de Atenas ou no foro romano em tempos de São Paulo, também hoje proliferam ídolos e divindades, pululam mestres, gurus, seitas, movimentos esotéricos e gnoses globais, que oferecem projetos de felicidade e utopias de salvação aos homens do tempo presente» (9). É necessário que a Igreja apresente com convicção e sem temor que não existe nem no céu nem na terra outro nome que tenha o poder de salvar a humanidade que não seja o nome de Jesus de Nazaré (10). É necessário afirmar ao homem de hoje que existem verdades (religiosas, éticas, etc.) que não podem ser relativizadas, manipuladas ou ideologizadas. Neste nível se coloca as verdades da fé, da revelação cristã.

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(1) A. SEELA, Globalização neoliberal neoliberal e exclusão social. Alternativas? São possíveis! = Temas de atualidade, São Paulo: Paulus 2002, pg. 58.

(2) Foro Social Mundial de Porto Alegre 2001 – Chamados à mobilização, pg.2.

(3) Os planos de estabilização monetária e a reforma do Estado são as condições impostas pelas organizações financeiras internacionais para que esses países venham se inserir, num futuro remoto, à nova realidade econômica mundial. A baixa taxa de crescimento dos países latino-americanos é uma das faces desse modelo de estabilização. Mas as conseqüências perversas são imediatas, e se expressam na desindustrialização, no desemprego, no aumento da miséria, na privatização das empresas e dos serviços públicos, com corte nos gastos sociais em educação, saúde, moradia, previdência, etc.

(4) O documento da II Conferência Episcopal de Medellín no seu projeto redacional não assume uma proposta de indicar ou fazer uma opção pastoral de forma explícita. Mas ao determinar os temas a serem estudados e aprofundados na Conferência os identifica como prioritários para a evangelização pós-conciliar no Continente. É neste sentido que aqui os consideraremos como opção pastoral.

(5) Dossier: Da Cristo sconfito a Cristo rigenerato – Segretaria della C.E.I., in CONFERENZA EPISCOPALE ITALIANA – Ufficio Nazionale. Cooperazione missionaria tra le Chiese. 2, aprile-giugno, 2002, pg. 10.

(6) O fenômeno da expansão das seitas na América Latina é amplamente analisado por P. Canova, na sua obra: Un vulcano in eruzione. Le sette in America Latina. O Autor, além de traçar uma tipologia das seitas, fornece dados sobre os organismos internacionais que promovem estas seitas e que operam na América Latina. Cf P. CANOVA, Un vulcano in eruzione. Le sette in America Latina, in Quaderni EMI/SUD /10, Bologna: EMI 1987. No caso do Brasil é importante observar que o expansionismo do protestantismo através das seitas pentecostais teve ínicio no imediato pós II Guerra Mundial, atingindo nos anos 60 a média de 6% da população. Alguns estudos importantes sobre esta questão: P. DAMBORIENA, El Protestantismo en America Latina, Oficina Internacional de Investigadores Sociales de Feres, Friburgo: FERES 1962.

(7) «Qualcosa de sorprendetemente nuovo è però accaduto alcuni anni fa. Il tradizionale Cristo sofferente è visto non più solo come simbolo di sofferenza con cui potersi identificare, ma anche e specificamente come simbolo di protesta contro la propria sofferenza e soprattutto come simbolo di liberazione. Oggi, nell’esperienza che molti cristiani dell’A.L. fanno della propria fede, Gesù è visto e amato come il Liberatore. È questo l’elemento nuovo e davvero sorprendente, che ricupera meglio l’identità di Gesù di Nazareth, mandato da Dio ad “annunciare ai poveri la Buona Notizia e a liberare i prigionieri” (Lc 4,18)» (Dossier: Da Cristo, pg. 10).

(8) Pela expressão «experiência religiosa espiritualista» consideramos a busca de uma vivência religiosa em uma determinada religião sem implicações e compromissos com a transformação da sociedade.

(9) Sínodo dos Bispos. Assembléia especial para a América. Encontro com Jesus Cristo vivo, caminho para a conversão, a comunhão e a solidariedade na América. Lineamenta, in A Voz do Papa /151, Paulinas: São Paulo 1996, nº 10.

(10) «Em ninguém mais se encontra a salvação; pois debaixo do céu não foi dado aos homens outro nome pelo qual possamos ser salvos» (At 4,12).

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